Impulsos do Coração


O valor do ser humano está no equilíbrio do seu coração. As distinções da carne foram criadas pelo homem.  Deus não diferencia ninguém.

O que motiva a escolha pelo sacerdócio?  Pura vocação?  Uma decisão forçada por rumos inesperados que a vida toma?  Ou é a alma que traça os rumos que a vida deverá tomar?  Não importa.  Para Augusto, ser padre é muito mais que devoção: é trabalho.  O amor de uma jovem fugitiva, porém, ameaça suas ações na luta contra a ditadura imposta pelo golpe militar de 1964.  Íntegro em seus princípios, mas dominado pela paixão, ele terá que confrontar suas verdades, suas convicções e seu próprio destino.

19 - Impulsos do Coração

 

Editora Vida & Consciência

Lançado em 2015

Ordem de lançamento: 19º

 443 páginas

 

Que tal experimentar o começo do livro?

Capítulo 1

Quando as gotas da chuva começaram a tamborilar no vidro da janela, Augusto se virou de lado na cama, tentando tapar os ouvidos para afastar da mente a perturbação. Sempre gostara do ruído da chuva, contudo, naquele dia em particular, o plic, plic constante o deixava irritado. Passara a noite em claro, pensando na melhor maneira de dizer ao pai que não queria acompanhá-lo naquele dia, como não quisera em nenhum outro.

As manhãs de sábado já não tinham mais o mesmo sentido de prazer desde que o pai cismara de praticar seu mais novo esporte: a caça às capivaras, segundo ele, uma forma eficiente, barata e apetitosa de se preparar um almoço. Augusto, porém, tinha horror a sangue e à barbárie da caça, que tirava a vida de animais inocentes para alimentar o ego e o prazer do caçador. Ainda se fosse para não passar fome, não diria nada. Mas o pai caçava por puro esporte e justificava a matança com o aproveitamento da carne para alimento.

Com o travesseiro sobre a cabeça, Augusto aguardava a entrada do pai, vestido em sua usual calça jeans desbotada e calçando botas de borracha, próprias para caçar. Em pouco tempo, a porta se abriu. O som do atrito que as botas do pai produziam lhe causou um arrepio na pele. Augusto detestava o barulho de borracha molhada. Fazia-o lembrar da morte.

– Bom dia, filho – cumprimentou Jaime, já segurando na mão a espingarda. – O café está pronto. Vamos ver se a chuva dá uma trégua para a gente sair.

– Vamos caçar com esse tempo?

– É claro! Ande, não se demore.

De má vontade, Augusto espreguiçou-se e levantou-se da cama, fitando as árvores pela janela. A água escorria das folhas em abundância. Um pequeno pardal se encolhia debaixo de um galho mais grosso para proteger as penas encharcadas. Vê-lo causou imenso mal-estar em Augusto, pois sabia que o animalzinho, embora não fosse a presa visada pelo pai, era motivo de diversão na prática do tiro ao alvo.
Augusto virou o rosto para o outro lado, lutando para conter a revolta e as lágrimas. Odiava o que o pai fazia aos animais, contudo, não tinha coragem de protestar.

– Um dia vou-me embora daqui – pensou alto. – E nunca mais vou machucar nenhum animal. Eu juro.

– O que está dizendo? – era a voz de Jaime que, sem que Augusto percebesse, entrara no quarto para ver por que ele se demorava tanto.

– Nada – hesitou o menino, com medo da reprimenda.

– Nada, não. Ouvi claramente você dizer que queria ir embora daqui para não machucar os animais. – Augusto se encolheu, enquanto o pai prosseguia: – É isso que acha que fazemos? Que machucamos os animais?

– Eu não quis dizer isso…

– Quis, sim. Foi exatamente o que disse. Onde já se viu um homem com pena de bicho? Por acaso estou criando um frouxo?

Augusto abaixou os olhos, sem ousar responder ou encarar o pai, que agora elevava a voz em um tom acima do normal. A quase gritaria atraiu a atenção da mulher, que logo estava ao lado deles.

– O que está acontecendo aqui? – indagou ela, preocupada.

– É esse menino, Laura. Sabe o que ele disse? – Ela meneou a cabeça, e ele retrucou com ironia: – Que tem peninha dos pobres animaizinhos indefesos. Onde já se viu?

Laura encarou o filho com um misto de compaixão e censura. Era um menino lindo. Pele alva e macia, cabelos negros e lisos, uma irresistível covinha no queixo.

– Augusto ainda é muito novo – justificou ela. – Daqui a pouco ele muda.

– Tenho minhas dúvidas. Eu, na idade dele, já tinha matado até onça.

– Deixe de ser exagerado.

– É verdade, Laura, eu juro. Meu irmão e eu matamos uma onça imensa em nossa viagem à Bocaina . Uma suçuarana danada de grande.

– Deixe de contar vantagem, homem. Suçuarana corre até de cachorro.

– Ele também – apontou para o filho. – Esse menino tem medo até de mosquito.

– Eu não tenho medo – arriscou Augusto, encorajado pela presença da mãe – Só tenho… pena.

– Quem tem pena fica depenado – revidou Jaime. – Não sabe disso? E agora, deixe de besteira, ou não vamos conseguir caçar nada.

– Ainda não tomei meu café – protestou ele.

– E nem vai tomar. É o castigo pela sua frescura.

Foram de caminhonete até o ponto por onde entravam na floresta, o estômago de Augusto roncando de fome e revolta. Debaixo da chuva, ajeitou a espingarda sobre o ombro. Saiu seguindo o pai, pisando na lama, encharcando o chapéu de couro de boiadeiro. Os dois caminharam pela floresta durante um bom tempo, Augusto atrás de Jaime com uma raiva crescente e muda. Odiava a caça e mais ainda a si mesmo, por sua covardia em não conseguir dizer ao pai que não iria mais matar.

Depois de alguns quilômetros mata adentro, a chuva amainou. Uma nesga muito tímida de sol se aventurou por detrás das nuvens cinza, lembrando a Augusto o pelo de um animal tingido de sangue. Desviando o rosto do céu, fitou o pai, que havia estacado subitamente, a espingarda em punho apontando para um ponto específico na floresta, onde um estalido havia acabado de atrair sua atenção. Os estalos continuaram mais próximos. Algumas plantas e galhos mais baixos foram sacudidos por um animal invisível.

Instintivamente, Augusto se aproximou de Jaime. A movimentação era muito grande para uma capivara, e a lembrança da suçuarana que o pai afirmara ter matado encheu Augusto de terror. E se uma onça estivesse à espreita?

– Pai – sussurrou ele. – O que é?

– Chi! – fez Jaime, levando o dedo aos lábios.

Encolhido atrás dele, Augusto seguia aterrorizado. Queria fugir, mas não se atrevia, ciente do perigo que os rondava. O ruído foi se tornando mais próximo, e uma espécie de rosnado indistinto partiu do meio dos arbustos.

– É uma onça? – indagou ele, o mais baixo que seus lábios trêmulos e apavorados permitiam.

Jaime não respondeu a princípio. Mantinha a espingarda fixa num alvo invisível. De repente, os estalidos se intensificaram. Toda selva pareceu se mover junto com as patas do bicho. Augusto imaginou um galope felídeo, já visualizando a onça saltando em cima deles, quando um estampido ensurdecedor ecoou pela mata. Um ganido terrível atravessou a floresta. Caules e folhas se vergavam e partiam na direção oposta a eles. O animal estava fugindo.

– O que é isso, pai? – tornou ele, lutando contra o terror.

– Um lobo – disse Jaime finalmente, disparando em desabalada perseguição.

Correndo logo atrás, Augusto ofegava de medo e indignação. Pela primeira vez um lobo aparecia por aquelas bandas, e o pai queria matá-lo? Não parecia justo. Correram por um bom tempo, mesmo quando o barulho do animal foi sufocado pelos ruídos da floresta. As pegadas impressas na terra molhada e no capim amassado deixaram um rastro fácil de ser seguido. Jaime demonstrou toda sua tenacidade ao se embrenhar na selva atrás do bicho.

– Deixe-o ir – pediu Augusto. – Ele não serve para comer.

– Sua pele dará um bom troféu. E depois, eu nunca antes cacei um lobo.

– Mas pai…

– Silêncio, Augusto! Agora não é hora para frescuras.

Augusto se calou, seguindo o pai com lágrimas de raiva nos olhos, que ele conseguia ocultar entre o suor do rosto e os pingos esporádicos que desciam das árvores. Iam seguindo as pegadas do animal, cada vez mais se embrenhando na mata escura, até que alcançaram uma pequenina clareira. O mais silenciosamente possível, pararam e buscaram abrigo atrás de uma pedra. De onde estava, o animal se fez visível. Parecia um lobo, mas era um lobo-guará. Augusto reconheceu a espécie pelas ilustrações que vira numa enciclopédia na biblioteca da escola. Lindo, a pelagem avermelhada encobrindo boa parte de seu corpo.

Solitário, o lobo-guará olhava ao redor, visivelmente cansado e consciente da ameaça de morte. Farejou o ar, mas não conseguiu detectar seu caçador, posicionado contra o vento, fora de sua percepção. Ainda desconfiado, abaixou a cabeça para beber água de uma imensa poça que se formara com a chuva.

– Não é um lobo – esclareceu Augusto, na esperança de assim salvar o animal da mira do pai. – É um lobo-guará.

– Tanto faz… – murmurou Jaime.

As feições de Jaime estavam agora duras e implacáveis. Era como se todo o seu corpo participasse daquele processo de caça. Não movia um músculo nem piscava, nem dava mostras de respirar. Parecia uma estátua de gelo apontando na direção do extermínio.

Jaime segurava a espingarda na altura dos olhos, firmando a pontaria no animal. Enquanto mirava o lobo-guará, nem se dava conta da turbulência que crescia no coração de Augusto. Uma revolta sem igual foi tomando conta dele. A compaixão avolumou as lágrimas, que agora se sobressaíam do suor e das gotículas de chuva. Por que o pai tinha que matar? Que fascínio era aquele que o fazia sentir prazer ante a visão do sangue e da morte?

O animal parecia agora despreocupado, aparentemente confiante de sua segurança. Não percebia o caçador à espreita nem o menino que chorava de pena pela sua morte próxima. Em seu íntimo, Augusto vivia um dilema: queria impedir a matança, mas morria de medo do pai. Seu pensamento o acusava de covarde, seu coração lutava para impor a justiça e o equilíbrio na natureza. Não era certo nem justo matar os animais em seu habitat natural, indefesos e livres onde deveriam se sentir seguros. E o pai não era índio, não precisava caçá-los para sobreviver. Fazia-o por esporte e prazer.

Preso em seus próprios temores, Augusto não sabia o que fazer. Pelo canto do olho, viu quando a língua do pai umedeceu-lhe os lábios ávidos e percebeu o dedo indicador pressionando o gatilho. Ora Jaime o premia com mais força, ora relaxava, antegozando a vitória sobre o magnífico animal. Queria prolongar ao máximo aquele momento de glória, a excitação que o poder sobre a vida e a morte do lobo-guará lhe causava na alma.

Augusto agora não tirava os olhos do pai, acompanhando, em silenciosa agonia, o vaivém do dedo de Jaime no gatilho. A cada pressão que ele fazia, o menino engolia em seco. Fechava os olhos, à espera do estampido e do grito de agonia do animal. Não entendia por que o pai não atirava, embora soubesse que ele jamais desistiria.

Aquele momento pareceu-lhe uma eternidade cruel. Ficar ali, à espera da morte sangrenta do lobo-guará, era algo que ia muito além de coragem e covardia. Era uma questão de princípios, de acreditar no que era certo e resistir a toda forma de atitude abaixo de um mínimo de moral.

Jaime decidiu que já era hora de atirar. A alma preenchida com o gozo da conquista, pressionou com mais força o gatilho, movendo-o em sua direção para liberar a bala mortal e cúmplice. Foi uma ação estudada, meticulosamente elaborada e aguardada. O desfecho, contudo, seria rápido, preciso. Não daria ao lobo-guará a menor chance de fugir nem de sobreviver.

No exato instante em que Jaime disparou a arma, Augusto se atirou sobre ele, derrubando-o ao chão. O tiro, desviado, tomou outra direção, passando longe do lobo-guará. Tomado de surpresa, Jaime deu um safanão em Augusto e se levantou apressado, ainda a tempo de ver o animal sumir por entre as árvores, penetrando na floresta cerrada com a rapidez de uma lebre. Fez pontaria e atirou novamente, mas a bala passou longe de sua presa. Mais que depressa, recarregou a arma e tornou a atirar, atingindo o grosso tronco de uma árvore.  Em vão. O lobo-guará havia escapado, embrenhando-se numa parte da floresta em que, Jaime sabia, não deveria segui-lo.

– Por que diabos fez isso? – perguntou ele irado, puxando o filho para cima pela gola da capa de chuva.

Augusto não respondeu, certo de que o pai já sabia a resposta, e começou a chorar.

– Maricas – desdenhou ele. – Meu filho de onze anos é um maricas! Uma bicha!

– Não sou bicha! – protestou com raiva. – Eu só não queria que você matasse o lobo-guará.

– Ah! não queria, não é? É amiguinho dos bichos, igualzinho às menininhas da escola, que vivem colecionando joaninhas!

– Não gosto de matar os animais – soluçou. – É maldade. Por que você não entende isso?

– Fez-me perder a presa por nada – tornou em tom de desprezo. – Porque tem peninha de bicho. Queria ver se ele nos atacasse.

– Ele não nos atacou. Só queria viver. Por que você não pode respeitar os animais? Por que não pode me respeitar?

– É isso, Augusto? Acha que não respeito você? – ele não disse nada. – Pois que filho covarde merece respeito? Respeito é para homens, não para maricas.

– Já disse que não sou maricas! – gritou. – E se fosse, também merecia respeito.

A bofetada veio rápida e certeira. Augusto levou a mão à face avermelhada, sentindo as lágrimas transbordarem em abundância.

– Só o que você sabe é chorar – menosprezou Jaime. – Nem parece meu filho. Teria sido melhor se tivéssemos uma menina, ao invés de um maricas medroso feito você. Ao menos ela não precisaria de desculpas para agir feito mulher.

Augusto engoliu o choro, enquanto Jaime lhe virava as costas, tomando o caminho de volta. O menino o seguiu em silêncio, encolhendo-se sob a capa para se proteger da chuva que voltara a cair. Pensou que o pai fosse continuar a caça, em busca de alguma capivara, mas ele desistiu. Com a espingarda no braço, rumou para casa sem trocar uma palavra que fosse com ele.

Daquele dia em diante, Jaime não levou mais Augusto para caçar.

3 comentários em “Impulsos do Coração

  1. ola
    queria muito ler esse livro
    impulso do coração .
    mas queria online .
    que como eu conseguir , mesmo que tenha que pagar
    obrigada
    CIDA

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